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ACÓRDÃO N.º 1032/2025 
 
PROCESSO N.º 1270-B/2025 
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade  
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional: 
 
I.  RELATÓRIO 
Paulo Jorge Coimbra Lopes, com os melhores sinais de identificação nos autos, veio a esta Corte Constitucional, ao abrigo da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional LPC –, interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, datado de 8 de Agosto de 2024, no âmbito do Processo n.º 5836/21, que condenou o Recorrente, na pena de 4 anos de prisão, pelo crime de abuso de confiança, à luz do artigo 404.º do Código Penal Angolano. 
Inconformado com a Decisão proferida, recorreu para esta Corte, onde notificado, alegou, tempestivamente, o que infra se arrola: 
 
O Acórdão supra identificado violou de forma grave e flagrante, direitos fundamentais subjacentes aos princípios da universalidade (artigo 22.º) da igualdade (artigo 23.º), bem como direitos e garantias fundamentais, nomeadamente, da irreversibilidade das amnistias (artigo 62.º), direito à liberdade (artigo 64.º) e ainda o direito/dever de aplicação retroactiva da lei criminal mais favorável ao arguido (n.º 4 do artigo 65.º), todos da Constituição da República de Angola (CRA). 
 
De acordo com a matéria fáctica carreada e provada, a ofendida nos autos, no dia 24 de Dezembro de 2015, descobriu que o aqui Recorrente subtraiu do seu armazém, no período compreendido entre Dezembro de 2014 a Setembro de 2015, mercadorias avaliadas em Kz 51 577 416, 41 (Cinquenta e um milhões quinhentos e setenta e sete mil, quatrocentos e dezasseis kwanzas e quarenta e um cêntimos). 
 
No caso sub judice, em decorrência da nova qualificação jurídica dos factos, pelo Tribunal Supremo a conduta do Recorrente deixou de ser punida com a pena abstracta de 12 a 16 anos, pelo crime de furto doméstico e passou a ser punida com uma pena mais leve ou mais branda, de 2 a 8 anos, pelo crime de abuso de confiança. 
 
Nos termos do n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto – Lei da Amnistia – são amnistiados todos os crimes comuns puníveis com pena de prisão até 12 anos, cometidos por cidadãos nacionais ou estrangeiros até 11 de Novembro de 2015. 
 
Os factos em que, pretensamente, o Recorrente incorreu se verificaram entre Dezembro de 2014 a Setembro de 2015. 
 
Inelutavelmente, assim, está extinta a responsabilidade criminal do arguido, em decorrência da aplicação do princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável. 
 
Termina pedindo, a revogação do Acórdão da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, por violação de princípios constitucionais, nomeadamente, da universalidade (artigo 22.º), da igualdade (artigo 23.º), da irreversibilidade das amnistias (artigo 62.º), da aplicação retroactiva da lei criminal mais favorável ao arguido (n.º 4 do artigo 65.º), bem como o direito à liberdade (artigo 64.º), todos consagrados na Constituição da República de Angola (CRA). 
 
O Processo foi à vista do Ministério Público, que pugnou pelo provimento do recurso. 
 
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir, já que nada a tal obsta. 
 
II.  COMPETÊNCIA 
 
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto com fundamento na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o respectivo âmbito como sendo “sentença dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.  
 
Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento da cadeia recursória, conforme estatuído no parágrafo único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, pelo que dispõe o Tribunal Constitucional de competência para apreciar o presente recurso. 
 
II.  LEGITIMIDADE 
 
A legitimidade para a interposição de um recurso extraordinário de inconstitucionalidade cabe, no caso de sentença, à pessoa que, em harmonia com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, possa dela interpor recurso, nos termos do disposto na alínea a) do artigo 50.º da LPC. 
 
No caso vertente, o Recorrente, enquanto parte do Processo n.º 5836/21, que tramitou junto da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo e que não viu a sua pretensão atendida, dispõe de legitimidade para recorrer. 
 
IV.  OBJECTO 
 
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é o Acórdão da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, prolatado no âmbito do Processo n.º 5836/21, competindo ao Tribunal Constitucional apreciar se o mesmo ofendeu os princípios da universalidade, da igualdade, da irreversibilidade das amnistias, da aplicação retroactiva da lei criminal mais favorável e do direito à liberdade, todos previstos na Carta Magna da República de Angola. 
 
V.  APRECIANDO 
 
É submetido à apreciação do Tribunal Constitucional, o Aresto prolatado pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 5836/21, que condenou o Recorrente, na pena de 4 anos de prisão pela prática do crime de abuso de confiança. 
 
O Recorrente, demanda pela intervenção do Tribunal Constitucional, por entender que o Acórdão recorrido ofendeu os princípios da universalidade, da igualdade, da irreversibilidade das amnistias, da aplicação retroactiva da lei criminal mais favorável e do direito à liberdade, previstos nos artigos 22.º, 23.º, 62.º, n.º 4 do artigo 65.º e artigo 64.º, todos da Constituição da República de Angola. 
 
Importa frisar que o Recorrente foi julgado em primeira instância pelo então Tribunal Provincial da Huíla e condenado pela prática do crime de furto doméstico, nos termos do disposto no n.º 3 e do § 1 do artigo 425.º do Código Penal de 1886, vigente à data dos factos, na pena de 8 anos de prisão maior, na sequência da atenuação extraordinária prevista no n.º 1 do artigo 94.º do referido diploma legal.  
 
À luz da lei penal vigente, entendeu o Tribunal Supremo que a mesma conduta constitui crime de abuso de confiança, nos termos do n.º 1 do artigo 404.º, conjugado com a alínea c) do artigo 392.º e a alínea a) do artigo 391.º do Código Penal, sendo punível com a pena abstracta de 2 a 8 anos de prisão, pelo que, sobre o Recorrente recaiu a condenação na pena concreta de 4 anos de prisão, no pagamento de Kz 200 000,00 (duzentos mil kwanzas) de taxa de justiça e a título de indemnização a quantia de Kz 51 577 416,41 (cinquenta e um milhões, quinhentos e setenta sete mil, quatrocentos e dezasseis kwanzas e quarenta e um cêntimos), tendo beneficiado igualmente do perdão de ¼ da pena. 
 
Com efeito, pelas razões acima sublinhadas, o Recorrente alude que o Acórdão objecto do presente recurso é inconstitucional, porquanto, no seu entender, não atendeu a aplicação retroactiva da lei mais favorável, bem como a extinção da responsabilidade criminal do arguido em função do consignado na Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto (Lei da Amnistia). 
 
Quanto ao princípio da universalidade, este, vem consagrado no artigo 22.º da Constituição da República de Angola, sendo que o n.º 1 estabelece que “os direitos fundamentais se aplicam a todas as pessoas, sem exclusão de sexo, raça, credo religioso ou convicção político-filosófica”. 
 
Ora, significa, desde logo, que todos os cidadãos são sujeitos constitucionais, bem assim sujeitos às mesmas regras e detentores de direitos a liberdade, igualdade, segurança, propriedade e outros direitos fundamentais, tendo o Estado como o principal defensor dos mesmos. 
 
Por seu turno, Raul Carlos Vasques Araújo e Elisa Rangel Nunes, asseveram que “o princípio da universalidade não se aplica apenas aos direitos. Eles estendem-se aos deveres que os cidadãos devem ter para com a família, o Estado e a sociedade e a outras instituições legalmente existentes” (Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, Luanda, 2014, p. 259). 
 
No que toca ao princípio da igualdade, de referir que é um princípio geral dos direitos fundamentais, que encontra amparo constitucional no artigo 23.º da CRA, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. Em matéria processual este princípio tem como consequência o princípio da igualdade das partes. 
 
Este normativo simboliza o positivismo jurídico, a justeza e a equidade do processo permitindo às partes litigantes pleitearem em condições homogéneas, ou seja, assenta no primado segundo o qual se deve tratar de forma igual o que é igual, e de forma diferente o que é diferente, na medida da própria diferença.  
 
Sobre o princípio da igualdade, Adlezio Agostinho refere que “a igualdade de oportunidades e o uso equitativo de armas entre as partes processuais determina a existência e respeito ao direito e a tutela jurisdicional efectiva. A igualdade de oportunidades e o direito ao acesso e tutela jurisdicional efectiva não se finaliza apenas com o acesso do cidadão aos órgãos jurisdicionais, mas essencialmente que lhes seja dada a possibilidade de defender os seus direitos e interesses legalmente protegidos, através de um processo jurisdicional equitativo e com cumprimento do formalismo legal” (Manual de Direito Processual Constitucional Princípios Doutrinários e Procedimentais sobre Garantias Constitucionais, AAFDL, 2023, p. 403). 
 
Ainda sobre o princípio em pauta, refere Jorge Reis Novais “a igualdade perante a lei continua a ser um mínimo que se impõe à observância de qualquer Estado de Direito enquanto exigência decorrente da igual dignidade de todos” (Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2014, p. 103). 
 
No que diz respeito à garantia dos direitos e liberdades fundamentais, é de salientar que os critérios para a aplicação das medidas de privação da liberdade encontram respaldo no n.º 1 do artigo 64.º de CRA, que preceitua “a privação da liberdade apenas é permitida nos casos e nas condições determinadas por lei”.   
 
Ademais, sobre esta temática, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, no artigo 6.º estabelece que “todo o individuo tem direito à liberdade e à segurança da sua pessoa. Ninguém pode ser privado da sua liberdade salvo por motivos e nas condições previamente determinadas pela lei; em particular ninguém pode ser preso ou detido arbitrariamente”.   
 
No tocante ao princípio da retroactividade da lei penal mais benéfica, vem plasmado no n.º 4 do artigo 65.º da CRA, consignando que, “ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais grave do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido. 
 
Da regra implícita na norma supra referida da Carta Magna, se depreende, por um lado, a proibição da aplicação retroactiva de lei penal desfavorável ao arguido e, por outro lado, a obrigação da aplicação da lei penal mais favorável ao arguido. 
 
À semelhança do consignado acima, estipula o n.º 2 do artigo 2.º do Código Penal Angolano (CPA), aprovado pela Lei n.º 38/20, de 11 de Novembro, que “(…) sempre que as disposições penais vigentes no momento da prática do facto são diferentes das protegidas em leis posteriores, aplica-se o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente. Se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior”. 
 
No mesmo diapasão, Orlando Rodrigues assevera que “o princípio da aplicação da lei mais favorável determina que se aplique a nova lei, caso a contravenção seja menos severamente punida que o anterior crime e, caso contrário, que se aplique a lei antiga” (Apontamento de Direito Penal, Escolar Editora, 2014, p. 66). 
 
Por seu turno, Américo Taipa de Carvalho assegura que “em matéria de sucessão de penas ou, segundo a designação tradicional, de aplicação de lei penal no tempo, vigora o princípio da aplicação da lei mais favorável. E também resulta que, hoje, é incorrecta a classificação da proibição da retroactividade como princípio geral e de retroactividade da lei mais favorável como excepção” (Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais, Teoria Geral do Crime, 2.ª ed., Coimbra, 2008, p. 178). 
 
 
Compulsados os autos (fls. 492 e 493 e verso), constata-se que o Tribunal recorrido ao julgar o caso objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, não se posicionou à margem da aplicação dos dispositivos legais que viessem tornar mais branda a medida aplicada. 
 
No caso em comento, ao contrário do que alega o Recorrente, o Tribunal Supremo, no Acórdão recorrido, não ofendeu os princípios da universalidade, da igualdade, direito à liberdade, e da aplicação retroactiva da lei criminal mais favorável, tendo em vista que a Decisão recorrida respeitou estes princípios com base na sua fundamentação de facto e de direito.  
 
Relativamente ao princípio da irreversibilidade das amnistias, nos termos do disposto na alínea g) do artigo 161.º da Constituição da República de Angola e da Lei, o instituto da amnistia é uma medida geral de clemência, através da qual o Estado, perante situações objectivamente excepcionais, renuncia a punição de determinada tipologia de crimes cometidos no período anterior à concessão da amnistia. A amnistia constitui uma causa de extinção do crime, ao contrário do perdão que integra uma causa de extinção da pena. 
 
Ademais, esta Corte Constitucional no Acórdão n.º 1008/2025, de 1 de Julho, sedimentou que “o princípio da irreversibilidade das amnistias, previsto no artigo 62.º da CRA, estabelece que os efeitos jurídicos dos actos de amnistia praticados ao abrigo de lei competente são considerados válidos e irrevogáveis. Isso significa que, uma vez concedida uma amnistia e produzidos seus efeitos, estes não podem ser desfeitos ou revogados, mesmo que a lei que a concedeu seja posteriormente alterada ou revogada. (…) A amnistia, uma vez concedida e produzindo seus efeitos, não pode ser retirada ou anulada, garantindo a estabilidade jurídica e a confiança nas decisões judiciais e legislativas” (disponível em: www.tribunalconstitucional.ao). 
 
Entretanto, compulsados os autos, fls. 487 a 493 e verso, verifica-se que na Decisão recorrida a pena aplicada ao ora Recorrente foi reduzida em ¼ da sua duração em conformidade com o n.º 1 do artigo 2.º da Lei da Amnistia, Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto. Contudo, constata-se que o Recorrente foi condenado por um crime cuja execução continuada compreendeu o período entre Dezembro de 2014 a Setembro de 2015, cuja moldura penal abstracta é de 2 a 8 anos de prisão, inserindo-se nos crimes amnistiáveis, à luz da referida lei.  
 
A este propósito, determina o n.º 1 do artigo 1.º da lei supracitada que, “são amnistiados todos os crimes comuns puníveis com pena de prisão até 12 anos, cometidos por cidadãos nacionais ou estrangeiros até 11 de Novembro de 2015. 
 
Assim sendo, esta Corte entende que o Tribunal ad quem deixou de aplicar uma norma a que estava obrigado por força do n.º 1 do artigo 2.º e do artigo 72.º, ambos da CRA, isto é, a norma contida no artigo 1.º da Lei da Amnistia, o que, resultaria na extinção do procedimento criminal. Esta constitui a linha de raciocínio propugnada na jurisprudência desta Corte, mormente no Acórdão n.º 694/2021, de 7 de Setembro (disponível em: www.tribunalconstitucional.ao). 
 
Face ao supra dilucidado, e nos termos do artigo 11.º da LPC, o Tribunal Constitucional considera que, efectivamente, o Acórdão recorrido ofendeu o princípio da legalidade e violou o direito ao julgamento justo e conforme, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo 2.º e do artigo 72.º, ambos da Constituição da República de Angola.  
 
Nestes termos, 
 
DECIDINDO 
 
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:   
DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE INCONSTITUCIONALIDADE, POR OFENSA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E VIOLAÇÃO AO DIREITO A JULGAMENTO JUSTO E CONFORME NOS TERMOS DO N.º 2 DO ARTIGO 2.º E O ARTIGO 72.º, AMBOS DA CRA; 
 
DETERMINAR, A COBERTO DO N.º 2 ARTIGO 47.º DA LPC, A BAIXA DOS AUTOS AO TRIBUNAL DA CAUSA, PARA EFEITOS DE CONFORMAÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA, BENEFICIANDO O RECORRENTE DA AMNISTIA.  
 
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional. 
 
Notifique. 
 
Tribunal Constitucional, em Luanda, 7 de Outubro de 2025. 
 
OS JUÍZES CONSELHEIROS 
 
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)  
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente e Relatora)  
 
Amélia Augusto Varela  
Carlos Alberto B. Burity da Silva  
Carlos Manuel dos Santos Teixeira  
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo  
Gilberto de Faria Magalhães  
João Carlos António Paulino  
Lucas Manuel João Quilundo  
Vitorino Domingos Hossi