ACÓRDÃO N.º 1034/2025
PROCESSO N.º 1230-B/2024
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Jamba António Simões e José Cataleco, melhor identificados nos autos, vieram interpor no Tribunal Constitucional o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão prolatado pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, em 25 de Agosto de 2022, no âmbito do Processo n.º 2088/18, que alterou a pena única de 14 anos e 8 meses de prisão maior para 8 anos pela prática do crime de roubo qualificado, em concurso real com o crime de detenção de armas proibidas, previstos e puníveis, respectivamente, pela alínea a) do n.º 2 do artigo 402.º e pelo n.º 1 do artigo 279.º, ambos do Código Penal Angolano (CPA), aprovado pela Lei n.º 38/20, de 11 de Novembro.
Irresignados com a Decisão da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, os Recorrentes, em síntese, arguiram o seguinte:
No âmbito do recurso interposto perante o Tribunal Supremo, suscitaram diversos factos que foram incorrectamente apreciados pelo Tribunal Provincial da Huíla, traduzindo-se em violação dos princípios da proporcionalidade, da dignidade da pessoa humana e da verdade material, os quais não mereceram a devida reapreciação.
Não pode o Tribunal Supremo concluir pela prática do crime de roubo qualificado, quando da prova produzida não resultou demonstração suficiente de tal ilícito.
O que efectivamente ocorreu foi uma manipulação dos factos por parte do ofendido, visando imputar toda a responsabilidade penal aos Recorrentes.
O Tribunal Supremo não observou nem valorou as declarações prestadas pelos arguidos, quer na fase do interrogatório, quer na audiência de julgamento.
Dos autos constam elementos probatórios que permitiriam a aplicação de penas mínimas, em conformidade com a Constituição da República de Angola (CRA) e com o princípio da legalidade processual.
O princípio da presunção de inocência, consagrado na CRA, constitui norma de aplicação directa e fundamentos dos direitos dos cidadãos, sendo igualmente um princípio lógico e natural. Assim, não tendo sido produzida prova bastante nem demonstrada a culpa dos réus, a sua condenação revela-se inadmissível.
A condução do processo foi marcada pela violação do princípio da igualdade, por parte dos órgãos de investigação criminal e do próprio poder judiciário.
A garantia de um processo legal justo foi igualmente violada, na medida em que se verificaram irregularidades desde a fase de instrução até à pronúncia, designadamente não terem sido ouvidos perante o magistrado do Ministério Público e por falta de notificação do despacho de pronúncia.
O princípio do in dubio pro reo também foi violado, por terem sido tratados como culpados, em razão da qualidade do ofendido.
O Acórdão recorrido violou ainda o princípio da proporcionalidade, plasmado no n.º 4 do artigo 65.º da CRA, que impõe a individualização da responsabilidade de acordo com as circunstâncias concretas do caso.
Os Recorrentes terminaram as suas alegações, “requerendo que se dê provimento ao recurso e a revogação do Acórdão recorrido porque inconstitucional, por violação dos princípios da verdade material, da presunção de inocência, bem como do in dubio pro reo”.
O Processo foi à vista do Ministério Público que, no essencial, pronunciou-se nos seguintes termos:
“Na verdade, cremos que os Recorrentes se sentem inconformados com a forma como o Acórdão recorrido analisou os factos, valorou a prova e apreciou as questões de direito, ou seja, não concordam com a maneira como as questões de mérito da matéria penal e processual penal foram tratadas no referido Acórdão, nem com a pena aplicada.
Uma análise ao Acórdão recorrido e, pela técnica de fundamentação por remissão, ao Acórdão de 1.ª instância de que se recorre, permitem compreender quais as questões colocadas pelos Recorrentes mereceram respostas com base na lei, na doutrina e na jurisprudência, não resultando violação aos princípios constitucionais invocados pelos Recorrentes.
Pelo exposto, propugnamos pela improcedência do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por não se mostrarem comprovados a violação de princípios constitucionais ou de direitos, liberdades e garantias fundamentais”.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, como sendo “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e de decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento da cadeia recursória conforme o estatuído no § único do artigo 49.º da LPC.
III. LEGITIMIDADE
Os Recorrentes são parte no Processo n.º 2088/18, que correu trâmites no Tribunal Supremo, por essa razão, têm legitimidade para interpor o presente recurso, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual, “no caso de sentenças, podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é o Acórdão prolatado pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, aos 25 de Agosto de 2022, no âmbito do Processo n.º 2088/18, cabendo verificar se o mesmo violou ou não princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionais.
V. APRECIANDO
A título prévio, compulsados os autos, constata-se que o recurso ordinário foi interposto no Tribunal Supremo pelo Ministério Público, por imperativo legal (fls. 218v e 222), e pela defesa dos Recorrentes, a qual, todavia, não apresentou alegações motivadas.
No que respeita ao presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, cabe frisar que os Recorrentes invocaram, nas suas alegações, fundamentos de facto e de direito (fls. 286 a 289), que deveriam ter sido deduzidos no Tribunal Supremo, em sede do recurso ordinário.
Ora, não é despiciendo sublinhar que o Tribunal Constitucional não se pode converter numa nova instância de recurso da jurisdição comum, como se de mais um grau de apreciação da interpretação e aplicação do direito infraconstitucional se tratasse. As competências atribuídas a esta Corte Constitucional encontram-se definidas, em termos conjugados, nos artigos 181.º da CRA e 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), na redacção dada pela Lei n.º 24/10, de 3 de Dezembro, reconduzindo-se, em geral, à administração da justiça em matéria de natureza jurídico-constitucional.
Nesta acepção, o ônus de especificação e densificação das questões de índole constitucional invocadas no recurso extraordinário de inconstitucionalidade impende exclusivamente sobre os Recorrentes, a quem compete articular, de modo claro e suficiente, a dimensão constitucional das suas pretensões, não bastando a mera reiteração de argumentos próprios da justiça comum.
A disciplina jurídico-legal da tramitação do processo constitucional obedece a um rito próprio, integrado por normas específicas que caracterizam este instituto processual. No âmbito da justiça constitucional, as alegações constituem a peça processual elementar para a adequada apreciação da causa sub judice pelo julgador, porquanto delimitam o objecto do recurso e expõem, de forma articulada, as razões e motivações da questão de constitucionalidade invocada pelos Recorrentes. Na falta dessa especificação, o recurso mostra-se obsoleto e oblíquo, desprovido dos pressupostos basilares exigidos à boa administração da justiça, à busca da verdade material, à efectivação da segurança jurídica e à correcta apreciação do mérito jurídico-constitucional.
É pacífica a jurisprudência desta Corte no sentido de que, por não se configurar como mais uma instância da jurisdição comum, ao Tribunal Constitucional é vedado proceder à reapreciação da matéria de facto ou ao reexame da prova produzida no processo (vide Acórdãos n.ºs 613/2020, 777/2022 e 791/2022, em www.tribunalconstitucional.ao).
Não obstante a falta de rigor técnico em sede das alegações, por um lado e, por outro, os Recorrentes terem arrolado fundamentos de facto e de direito, invocando a violação de determinados princípios constitucionais, consegue-se extrair elementos razoáveis para a apreciação.
Veja-se;
Os factos trazidos à colação pelos Recorrentes, não foram previamente suscitados perante o Tribunal Supremo, no âmbito do recurso ordinário então interposto.
Ora, nos termos do artigo 49.º da LPC, o recurso extraordinário de inconstitucionalidade destina-se à sindicância de decisões judiciais que, após o esgotamento da cadeia recursória, contenham fundamentos que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados. Daí decorre, por força da sua própria natureza, que tal meio impugnatório não pode ser utilizado como via originária de arguição de vícios ou ilegalidade não previamente suscitados perante as instâncias competentes. Em consequência, todas as questões levantadas não podem, em rigor, ser objecto de apreciação por este Tribunal Constitucional.
Deste modo, sublinha-se que na fase do recurso ordinário, apesar da falta de motivação das alegações, o Tribunal Supremo procedeu, ainda assim, à reapreciação da Decisão proferida pela 1.ª Secção da Sala das Questões Criminais do Tribunal Provincial da Huíla. Desta reapreciação resultou provado que os Recorrentes praticaram o crime de roubo qualificado, previsto e punível pela alínea a) do n.º 2 do artigo 402.º do CPA, em concurso real com o crime de detenção de armas de fogo, previsto e punível pelo n.º 1 do artigo 279.º do mesmo diploma legal, tendo, em cúmulo jurídico, sido condenados na pena única de 8 anos de prisão.
Entretanto, o juízo interpretativo levado a cabo pelo Tribunal Supremo, que determinou a aplicação da lei penal nova mais favorável e, consequentemente, a redução da pena para 8 anos de prisão, decorre da estrita observância do princípio da legalidade, que enforma a ordem jurídica fundamental do Estado Democrático de Direito e cuja essência normativa impõe a conformação da actuação dos poderes públicos e privados à Constituição e à lei.
O referido princípio encontra-se consagrado no n.º 2 do artigo 6.º da CRA, ao estabelecer que “o Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis”.
A convicção firmada pelo Tribunal Supremo, que sustenta o juízo emitido, assenta nas provas constantes dos autos. Acresce que os próprios Recorrentes, nas suas alegações, afirmaram o seguinte: “dos autos constam elementos probatórios que podiam ditar a condenação dos arguidos em penas mínimas, em respeito à Constituição da República de Angola (CRA) e do princípio da legalidade processual”.
Por conseguinte, é patente que os Recorrentes não se conformaram com a medida da pena que lhes foi aplicada, por entenderem que o Tribunal deveria ter fixado sanção mais branda.
Na verdade, em primeira instância, os Recorrentes foram condenados em cúmulo jurídico, na pena única de 14 anos e 8 meses de prisão maior, pela prática do crime de roubo qualificado em concurso real com o crime de porte ilegal de arma de fogo.
Não obstante não terem apresentado alegações motivadas em sede do recurso ordinário interposto junto ao Tribunal Supremo, que pudessem infirmar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, ainda assim, e por força do princípio da legalidade, viram as suas penas reduzidas para 8 anos de prisão, em virtude da aplicação da lei penal nova, mais favorável, efectuada pelo Tribunal recorrido.
Deste modo, não procede a invocada falta de fundamento ou ausência de reapreciação por parte do Tribunal Supremo, na medida em que, não há argumentos de facto e de direito capazes de conduzir a diversa aplicação do direito relativamente à Decisão proferida pelo Tribunal Provincial da Huíla.
Contudo, o Tribunal recorrido, considerando a entrada em vigor do actual Código Penal, que revogou o Código Penal de 1886, e em estrita obediência ao disposto no n.º 2 do artigo 2.º do CPA, procedeu à alteração da pena anteriormente aplicada, fixando-a em 8 anos de prisão, por ser a lei nova mais favorável.
Desta feita, resulta claro que, com fundamento no princípio da livre apreciação da prova, tanto o Tribunal de primeira instância como o Tribunal recorrido firmaram as suas decisões, nos termos da Constituição e da lei.
Em suma, este é, também, o entendimento desta Corte, consignado no Acórdão n.º 860/2023, de 16 de Novembro, segundo o qual não há violação do direito a julgamento justo e conforme (artigo 72.º da CRA) “quando a interpretação feita pela jurisdição comum no Aresto recorrido é conforme a CRA, por ser fundamentada em legislação subsidiariamente aplicável ao caso concreto, e garantindo-se o direito a ampla defesa, que é um direito com dignidade constitucional, permitindo-se que as partes apresentem todos os argumentos de razão a seu favor perante o julgador com o objectivo de influenciá-lo, direito este que é uma manifestação do direito ao contraditório”.
Destarte, carecem de razoabilidade e de sustentação jurídica as alegações de violação dos princípios da presunção de inocência (n.º 2 do artigo 67.º da CRA), do julgamento justo e conforme (artigo 72.º da CRA), bem como o princípio da verdade material, previsto no artigo 9.º do CPPA, porquanto os Recorrentes não lograram demonstrar razões jurídico-constitucionais bastantes que sustentem a sua causa petendi, sendo certo que o Tribunal Supremo exerceu a sua função jurisdicional nos estritos marcos da Constituição e da lei.
Face ao defluído, o Tribunal Constitucional conclui que o Acórdão recorrido não ofendeu princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais previstos na Constituição da República de Angola.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 8 de Outubro de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Amélia Augusto Varela
Carlos Alberto B. Burity da Silva
Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo
Gilberto de Faria Magalhães
João Carlos António Paulino
Lucas Manuel João Quilundo (Relator)
Vitorino Domingos Hossi