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ACÓRDÃO N.º 1038/2025 
 
PROCESSO N.º 1346-B/2025 
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade (Habeas Corpus) 
 
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional: 
 
I.  RELATÓRIO 
Yuri António Melo, Recorrente, devidamente identificado nos autos, inconformado com o Despacho do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, que julgou improcedente a providência cautelar de habeas corpus, proferido em sede do Processo n.º 1/2025, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade. 
Para o efeito, aduziu, em síntese, o seguinte: 
O Despacho do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal que, com respaldo nos artigos 261.º, 262.º e 263.º, todos do CPPA, à margem da base de sustentação que os respectivos textos e espírito exigem, originou a inconstitucionalidade da própria decisão por contender com direitos e princípios plasmados na Constituição. 
  
O referido Despacho é inconstitucional, na medida em que se ancora num argumento inexistente, ilegal e totalmente inconstitucional, ou seja, os actos do Tribunal Supremo violam indubitavelmente normas constitucionais que tutelam direitos e garantias fundamentais, nos termos dos artigos 1.º, 6.º, 27.º, 28.º, 29.º, 36.º, 57.º, 63.º, 64.º, 66.º, 67.º, 68.º, 72.º e 73.º, todos da Constituição da República de Angola. 
 
Encontra-se detido desde o dia 2 de Setembro de 2022, concretamente há 29 meses e 10 dias, por supostamente ter cometido um crime de Homicídio Qualificado em Razão dos Meios, condenado pelo Tribunal da Comarca de Malanje na pena de 21 anos de prisão. 
 
O Despacho, ainda, advoga a improcedência do pedido de habeas corpus tendo como base o princípio da Ordem Pública, nos termos do artigo 11.º da CRA. 
 
A Decisão recorrida parece mais um Acórdão condenatório do que propriamente um Despacho que improcede um pedido de habeas corpus, na medida em que traz uma narrativa pejorativa sobre o Arguido, violando o princípio da presunção da inocência, nos termos do n.º 2 do artigo 67.º, da sua garantia recursiva, nos termos do n.º 6 do artigo 67.º, ambos da CRA, pois o Processo em causa ainda não transitou em julgado, encontrando-se em apreciação no Tribunal Supremo. 
 
Com a narrativa constante do referido Despacho, denota-se que o Processo já se encontra inquinado e uma pré-condenação do ora Recorrente, beliscando de forma genérica e absoluta os princípios constitucionais ante expostos. 
 
Termina pedindo que este Tribunal declare inconstitucional o Despacho recorrido, por violar normas e princípios constitucionais acima referidos e, em consequência, que seja determinada a sua imediata restituição à liberdade. 
 
O Processo foi à vista do Ministério Público que, a fls. 78-79 dos autos, pugnou pela extinção da presente lide por inutilidade superveniente, à luz da alínea e) do artigo 287.º do CPC, ex vi 2.º da LPC. 
 
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir. 
 
II. COMPETÊNCIA 
 
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC). Esta competência está, igualmente, prevista na alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC). 
 
III.  LEGITIMIDADE 
 
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC e do n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicável ex vi o artigo 2.º da LPC, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.  
 
O Recorrente é o impetrante do processo de habeas corpus, cujo pedido foi indeferido pelo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, tendo, por essa razão, legitimidade para requerer o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade. 
 
IV.  OBJECTO 
 
O presente recurso tem como objecto o Despacho do Juiz Presidente do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 1/2025, pelo que importa verificar se este ofendeu ou não, princípios, direitos, liberdades e garantias do Recorrente, previstas na Constituição da República de Angola (CRA).  
 
V. APRECIANDO 
 
Escrutinadas as alegações, delas se extrai que o Recorrente pretende desta Corte a declaração de inconstitucionalidade do Despacho prolatado aos 16 de Maio de 2025, pelo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo de habeas corpus, registado sob o n.º 1/25, que  indeferiu o pedido de restituição à liberdade física com fundamento no perigo de continuação da actividade criminosa e perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, consagrados na alínea c) do n.º 1 do artigo 263.º do CPPA e no artigo 11.º da CRA. 
 
Ampara o referido pedido o facto de encontrar-se cerceado da sua liberdade física há 29 meses e 10 dias, sem o trânsito em julgado da Decisão condenatória, uma vez que se encontra pendente de recurso, configurando tal situação, uma agressão flagrante aos princípios constitucionais da legalidade e supremacia da Constituição, dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, da proporcionalidade, da necessidade, da subsidiariedade, da presunção da inocência, do julgamento justo e conforme, da liberdade física e da proibição de prisões arbitrárias. 
 
Em face da factualidade acabada de expor, cumpre apreciar, para, no final, decidir. 
 
Veja-se: 
 
A Constituição da República de Angola, no catálogo dos direitos fundamentais, consagra o direito à liberdade física no seu artigo 36.º.  
 
Preceitua o n.º 1 deste dispositivo constitucional que: “todo cidadão tem direito à liberdade física e à liberdade individual”.  
 
Neste sentido, Jorge Miranda e Rui Medeiros defendem que “a liberdade é um momento absolutamente decisivo e essencial – para não dizer, o próprio e constitutivo modo de ser – da pessoa humana (…), que lhe empresta aquela dignidade em que encontra o seu fundamento garantístico a ordem jurídica (e, antes de mais, jurídico-constitucional) (…). Pode dizer-se, neste sentido, a «pedra angular» do edifício social (…)” (Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, Preâmbulo, Princípios Fundamentais, Direitos e Deveres Fundamentais, Artigos 1.º a 79.º, 2.ª ed., 2010, p. 637). 
 
Para Gomes Canotilho e Vital Moreira, o Direito à liberdade “(…) engloba fundamentalmente os seguintes sub-direitos: a) direito de não ser preso ou detido pelas autoridades públicas (…); b) direito de não ser aprisionado ou fisicamente impedido ou constrangido por parte de outrem; c) direito à protecção do Estado contra atentados de outrem à própria liberdade” (Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Vol. I, 4.ª ed. Revista, 2007, p. 478). 
 
De harmonia com o preceituado na Constituição da República de Angola, ninguém pode ser privado da liberdade, excepto nos casos e nas condições determinadas por lei (vide n.º 2 do artigo 36.º e n.º 1 do artigo 64.º). Tais casos reconduzem-se à detenção, as medidas de coacção pessoal privativas ou limitadoras do direito à liberdade, à aplicação de uma pena ou medida de segurança concretamente individualizada a um condenado em consequência de Sentença ou Acórdão condenatório transitados em julgado, ou eventualmente em situações de excepção constitucional (alíneas a) e b) do artigo 248.º, n.º 1 do artigo 250.º, 276.º, 277.º, 279.º, 418.º, 493.º, n.º 1 do artigo 496.º, 501.º e 502.º, todos do CPPA e 57.º e 58.º da CRA). 
 
A medida de coacção pessoal em análise consiste na privação da liberdade feita através do internamento do arguido em estabelecimento de reclusão, afastando-o da vida social e da vida doméstica, em especial o convívio familiar (vide Afonso Comidando, Direito Processual Penal, 3.ª ed., Editora FD IURIS, p. 430).  
 
Trata-se da mais incisiva e grave medida cautelar cujo recorte legal consta dos artigos 279.º a 284.º do CPPA. 
 
Muito embora se destine ao cumprimento de exigências processuais de natureza cautelar determinadas pelo n.º 2 do artigo 249.º e pelo n.º 1 do artigo 263.º, ambos do CPPA, a prisão preventiva sujeita-se aos princípios da legalidade, proporcionalidade, subsidiariedade e adequação, previstos nos artigos 261.º e 262.º do mesmo Código, além de que obedece aos prazos legais estipulados no artigo 283.º do citado diploma legal. 
 
 
 
O habeas corpus é uma providência extraordinária e expedita destinada a assegurar de forma especial, o direito à liberdade constitucionalmente garantido e que visa reagir de modo imediato e urgente, contra o abuso de poder em virtude de detenção ou prisão, efectiva e actual, ferida de ilegalidade (vide Raul Vasques Araújo e Elisa Rangel Nunes, Constituição da República de Angola, Anotada, Tomo I, p. 389). 
 
Como aflorado no conceito acima expendido, (…) para que o pedido de habeas corpus possa merecer acolhimento, é (…) necessário que a ilegalidade da prisão seja actual, “actualidade reportada ao momento em que é apreciado aquele pedido” (vide Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2008, p. 461). 
 
No caso sub judice, verifica-se que o Recorrente, durante a pendência destes autos, concretamente no dia 17 do mês de Julho do ano em curso, foi condenado pelo Tribunal de recurso na pena de 14 anos de prisão, e contra esta Decisão não foi interposto recurso, verificando-se o seu trânsito em julgado. Na sequência, os autos baixaram ao Tribunal da Relação de Luanda aos 13 de Agosto de 2025 e, de seguida, foram remetidos à Comarca de Malanje enquanto jurisdição originária. 
 
Portanto, considera-se que este facto tornou supervenientemente inútil a sindicância da medida cautelar de prisão preventiva que o Recorrente pretendia nestes autos, visto que a privação da sua liberdade deixou de ter carácter cautelar, excepcional e actual e passou a fundamentar-se numa Decisão condenatória (alínea e) do artigo 287.º do CPC, aplicável ao processo constitucional por força do artigo 2.º da LPC, n.º 2 do artigo 268.º e n.º 1 do artigo 290.º, ambos do CPPA). 
Ainda a despeito dos argumentos presentemente aludidos, acresce-se que, semelhante entendimento é consolidado pela jurisprudência desta Corte, dentre outros, nos seus Acórdãos n.ºs 922/2024 e 1011/2025 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao), sendo que, neste último ficou asseverado o seguinte: “conforme consta dos autos, o julgamento do recurso teve lugar no dia 30 de Janeiro de 2025, tendo sido o Recorrente definitivamente condenado à pena de 8 anos de prisão maior, sem que da referida Decisão tenha interposto qualquer outro recurso com efeito suspensivo (…). Diante do trânsito em julgado da decisão condenatória, esgota-se a finalidade da providência de habeas corpus - que visava exclusivamente a cessação de uma prisão preventiva supostamente ilegal, torna-se evidente a perda superveniente de interesse processual na lide constitucional, porquanto a situação carcerária do Recorrente deixou de ter natureza cautelar, passando a revestir-se de natureza executória, derivada de Sentença penal definitiva”.  
Nestes termos, 
DECIDINDO 
 
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DECLARAR EXTINTA A INSTÂNCIA POR INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE, NOS TERMOS DA ALÍNEA E) DO ARTIGO 287.º DO CPC, APLICÁVEL AO PROCESSO CONSTITUCIONAL, POR FORÇA DO ARTIGO 2.º DA LPC. 
 
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional. 
 
Notifique. 
 
Tribunal Constitucional, em Luanda, 4 de Novembro de 2025. 
 
OS JUÍZES CONSELHEIROS 
 
Laurinda Jacinto Prazeres (Presidente)  
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)  
Amélia Augusto Varela (Relatora) 
Carlos Alberto B. Burity da Silva 
Carlos Manuel dos Santos Teixeira 
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo 
Gilberto de Faria Magalhães 
João Carlos António Paulino 
Lucas Manuel João Quilundo  
Vitorino Domingos Hossi