ACÓRDÃO N.º 1040/2025
PROCESSO N.º 1285-A/2025
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional
I. Relatório
Artur Almeida e Silva, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional impetrar recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do Processo n.º 2667/2019, que confirmou a Decisão prolatada em sede de uma Acção Declarativa de Condenação, que tramitou na 3.ª Secção da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal da Comarca de Luanda.
Nos termos da referida Acção de Condenação, intentada por Carlos Alberto de Jesus Lopes Rey, o aqui Recorrente foi condenado a restituir ou a pagar ao Autor da acção bens avaliados em Kz. 20 613 052,00 (vinte milhões, seiscentos e treze mil e cinquenta e dois Kwanzas), Kz. 43 765 216,00 (quarenta e três milhões, setecentos e sessenta e cinco mil, duzentos e dezasseis Kwanzas), a título de lucros cessantes, Kz. 4 521 200,00 (quatro milhões, quinhentos e vinte e um mil e duzentos Kwanzas), por danos não patrimoniais, Kz. 2 712 720,00 (dois milhões, setecentos e doze mil e setecentos e vinte Kwanzas), pelo reembolso de despesas realizadas e a realizar, bem como a pagar o máximo de procuradoria e as custas judiciais.
Nesta Instância, irresignado com o não provimento da Apelação, alega que o Aresto que resultou desse recurso viola princípios e direitos consagrados na Constituição da República de Angola (CRA), designadamente, os princípios da legalidade e da responsabilidade civil do Estado (artigos 6.º e 75.º da CRA), os direitos a julgamento justo e conforme, de petição, denúncia, reclamação e queixa (artigos 72.º e 73.º da CRA), à luz dos fundamentos que, em resumo, se enunciam:
Os comandos que constituem o princípio do julgamento justo e conforme, concretamente a valoração equitativa da prova produzida, bem como a decisão proferida nos termos da Constituição e da lei foram inicialmente preteridos, no âmbito da Decisão prolatada pela 3.ª Secção da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal da Comarca de Luanda, tendo sido confirmada e mantida pelo Tribunal Supremo ao arrepio da disposição normativa constitucional (artigo 72.º da CRA).
Esta conclusão resulta do facto de os Tribunais da jurisdição comum terem ignorado a defesa e o posicionamento do alegante (aqui Recorrente) nos referido autos que, no exercício do seu direito de queixa, consagrado no artigo 73.º da CRA, e na qualidade de sócio gerente da sociedade comercial Real Sport – Serviços Integrados de Desporto, Lda., fez uma queixa crime contra o Sr. Teodósio Rey, gerente desta sociedade à data dos factos, por desvio de material e equipamento pertencente a esta sociedade.
Na sequência da queixa, o Estado, representado pelos seus agentes afectos à Direcção Provincial de Investigação Criminal (DPIC), procedeu, no âmbito do Processo-Crime n.º 9260/09, à apreensão dos bens objecto do litígio, tramitado na 1.ª Instância, com a chancela da Procuradoria-Geral da República, e sem a intervenção ou participação do alegante.
A sua condenação pela acção, alegadamente eivada de excessos ou não, protagonizadas pelos agentes de polícia, decorrente da sua intenção de proteger o acervo patrimonial da sua empresa, constitui uma autêntica violação do direito de denúncia e queixa, bem como do direito a julgamento justo e conforme, previstos respectivamente nos artigos 73.º e 72.º da CRA.
Não se concebe, assim, que o pacato cidadão seja judicialmente prejudicado pelos actos levados a cabo pelas autoridades de polícia, apenas porque exerceu um direito legal e constitucional, diga-se o direito de queixa, que constitui o móbil da condenação do alegante.
O Acórdão recorrido atenta gravemente contra o princípio da legalidade, previsto no n.º 1 do artigo 6.º, em resultado da violação do artigo 75.º, ambos da CRA, pelo facto de o alegante ter sido condenado pelas acções praticadas pelos agentes pertencentes à Direcção Provincial de Investigação Criminal, no quadro das diligências que efectivaram em decorrência da participação criminal e que resultou na apreensão de bens, supostamente pertencentes ao contra alegante (Carlos Alberto de Jesus Lopes Rey).
Os autos não deixam lacunas ou margens para dúvidas de que foi a DPIC que realizou a apreensão do referido material e equipamento, em que qualidade procedeu e por ordem expressa e orientação de quem assim actuou, o que faz recair responsabilidade sobre o Estado, atendendo ao disposto no n.º 1 do artigo 75.º da CRA.
É o Estado que, na qualidade de pessoa colectiva pública, deve responder solidária e civilmente por acções e omissões praticadas pelos seus órgãos, in casu, a Direcção Provincial de Investigação Criminal, no exercício das suas funções (…) administrativas (cfr. n.º 1 do artigo 75.º da CRA, sob pena de ser violado o artigo em causa).
À responsabilidade civil do Estado está subjacente o dever de indemnizar e, nos Estados democráticos de direito, à semelhança de Angola, os administrados têm os seus direitos e garantias consagrados e protegidos nos textos constitucionais e demais legislação.
Termina as suas alegações requerendo que o Acórdão posto em crise seja declarado inconstitucional, por violação dos direitos e princípios consagrados nos artigos 6.º, 72.º, 73.º e 75.º, todos da Constituição da República de Angola.
O Processo foi à vista do Ministério Público que propugnou pelo não provimento do recurso, considerando, no essencial, que as questões colocadas pelo Recorrente a esta Corte são as mesmas “respondidas no processo-base, o que demonstra um inconformismo com a forma como o Acórdão recorrido apreciou e aplicou o direito no caso concreto, como este decidiu o mérito ou o fundo da questão. Mais, aduz o Ministério Público que “do artigo 181.º da CRA resulta claro que não cabe ao Tribunal Constitucional aferir do mérito do Acórdão recorrido, mas apenas da inconstitucionalidade deste” e que não conseguiu, no Aresto posto em crise, “detectar elementos comprovativos da violação dos princípios e direitos invocados (…)”.
Colhidos os vistos legais do Juízes Conselheiros cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que violem princípios, direitos, garantias e liberdades previstos na Constituição, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente cabíveis, por força da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC).
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente é parte vencida no processo cujo Acórdão é objecto do presente pedido de impugnação. Tem, como tal, legitimidade processual activa para recorrer, nos termos previstos na alínea a) do artigo 50.º da LPC e no n.º 2 do artigo 293.º do Código do Processo Civil (CPC), aplicado subsidiariamente ao processo constitucional, ex vi do artigo 2.º da LPC.
IV. OBJECTO
É objecto do presente recurso o Acórdão da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do Processo n.º 2667/2019.
V. APRECIANDO
O pedido de inconstitucionalidade em sindicância tem subjacente o facto de, na perspectiva do Recorrente, a sua condenação, confirmada pelo Tribunal recorrido, resultar da preterição de critérios relativos à valoração equitativa da prova produzida e estar alicerçada em actos susceptíveis de responsabilizar civilmente o Estado, personificado, in casu, pela Direcção Provincial de Investigação Criminal (DPIC), por danos causados na esfera patrimonial de outrem, à luz do estabelecido no n.º 1 do artigo 75.º da CRA. Pelo que, a questão substancial tem que ver com a responsabilidade civil e a valoração da prova para efeitos de responsabilização civil.
Argumenta, na sequência, que a decisão condenatória, além de prefigurar violação do direito a julgamento justo e conforme, do princípio da legalidade e do vertido no artigo 75.º da Constituição, atenta, igualmente, contra o direito de petição, denúncia, reclamação e queixa, previsto no artigo 73.º da CRA, posto que a acção cível em que foi condenado e que está na origem do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, está associada a uma queixa-crime, por abuso de confiança, que apresentou junto da DPIC.
Deste modo, será de considerar que o Recorrente, ao impugnar o Acórdão do Tribunal Supremo, nos termos apresentados, mais não faz do que colocar em causa a justeza dessa Decisão. E isto se se entender que a decisão judicial justa é aquela que emerge de um processo em que, ante a factualidade provada, são convocados e aplicados os princípios e normas jurídicas que, do ponto de vista material e procedimental, se afiguram como os mais adequados para dirimir os aspectos controvertidos da lide.
É, pois, da concretização entre regras infraconstitucionais, princípios constitucionais, parâmetros normativos e valores fundamentais da ordem jurídica que, no exercício da jurisdição, há lugar à decisão justa que, fundada no direito, se firma como mecanismo de realização da justiça, enquanto correlacto lógico e necessário de quem recorre ao Tribunal para litigar por direitos e interesses juridicamente tutelados.
Sobre a violação do direito a julgamento justo e conforme e do princípio da legalidade
Atentos à fundamentação e à aplicação do Direito ao caso concreto, impor-se-á verificar em que medida o Aresto da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo contraria o direito ao julgamento justo e conforme que, como direito compósito, constitui um dos pressupostos da decisão justa; o princípio da legalidade, fundamento normativo da função de julgar e, por inerência, da decisão justa; e os direitos de denúncia, reclamação e queixa, bem como a responsabilidade civil do Estado.
Assim, veja-se:
A decisão judicial é sempre resultado de um processo e, por conseguinte, de diferentes tipos de ligações que nele se verificam. No processo decisório há uma relação que se estabelece entre os factos e as normas; princípios constitucionais e/ ou legais aplicados, com vista a resolução do caso concreto. São os fundamentos de tais bilateralidades, que o Recorrente questiona nesta Instância, como já antes o havia feito em sede do Tribunal Supremo, onde, semelhantemente, centrou a sua Apelação na questão da prova e da responsabilidade civil do Estado.
No âmbito do recurso de Apelação alegou também a violação do direito a julgamento justo e conforme (72.º da CRA) e do princípio da legalidade, ínsito no n.º 2 do artigo 6.º da CRA, na sua conjugação com o artigo 483.º do Código Civil (CC). Manifestou-se, por um lado, em desacordo com o facto de o Tribunal de primeira instância não ter considerado a 3.ª parte do n.º 1 do artigo 490.º do Código de Processo Civil (CPC), dando como provados por acordo os factos que não foram especificadamente impugnados por si. Por outro, considerou inexistir qualquer nexo de causalidade entre os danos causados ao titular dos bens apreendidos e a sua conduta, imputando tais prejuízos à actuação dos agentes da DPIC.
Ora, o Tribunal recorrido formulou o seu juízo decisório tendo em conta, entre outros, os seguintes factos dados como provados: apreensão, na sequência da Queixa/Processo-Crime n.º 9260/09-04, de equipamento/material pertencente ao Autor da Acção Declarativa de Condenação; entrega ao aqui Recorrente, a título de fiel depositário, do material apreendido; inexistência de relação entre o processo-crime e o Autor da Acção Declarativa de Condenação; reconhecimento do Autor da Acção de Condenação como o único e legítimo proprietário dos bens apreendidos, pois foi quem os encomendou, comprou e pagou, no valor total de USD 206 130,52 (duzentos e seis mil, cento e trinta dólares norte-americanos e cinquenta e dois cêntimos), conforme facturas e recibos; apreensão do material a pedido do ora Recorrente, arrogando-se ser proprietário do mesmo (provado por acordo); o facto de o aqui Recorrente saber que o referido processo-crime nada tinha que ver com o Autor da Acção Cível, mas sim com o antigo Director da sua empresa (provado por acordo); o facto de o Recorrente nestes autos ter induzido as autoridades em erro, levando-as à apreensão e remoção dos bens, causando ao proprietário destes graves prejuízos patrimoniais e não patrimoniais (provado por documento); o facto de, em resultado da apreensão, o seu proprietário ter deixado de celebrar contratos de aluguer no valor total de USD 480 000,00 (provado por acordo).
Considerando que a liberdade é o pilar da responsabilidade civil, facilmente se compreende as exigências legais não apenas do elemento volitivo e da acção subjectiva, mas também a ilicitude, a conexão entre a acção humana e o prejuízo, bem como o dano, desta feita, são computados tanto o dano imediato como o mediato.
Assim, os danos que emergiram da actividade humana ilícita são tão relevantes quanto os danos que resultem na privação ou falta de proveito, que se obteria, se a acção ilícita não se tivesse verificado.
Em sede do caso em apreciação, tais elementos tiveram de ser verificados não apenas na relação subjectiva entre o aqui Recorrente e o, então, Autor nas acções precedentes, mas também na ligação entre aquele e a DPIC. Para o efeito, tanto um alegou, como o aqui Recorrente contra-alegou, as razões e os fundamentos para fazer valer a posição respectiva.
Ao observar os autos, resulta evidente que o aqui Recorrente se encontra na posse de bens alheios. Essa posse lhe foi possibilitada, como bem alega, pela entrega, em sede de um processo-crime, dos referidos bens por agentes da DPIC. Ora, embora haja um termo oficial de entrega, não se verifica nos autos, qualquer despacho de fundamentação a explicar a razão da opção de constituir-se o queixoso (aqui Recorrente) em fiel depositário, tendo em conta que o regime regra à época, estabelecido no n.º 1 do artigo 24.º da Lei n.º 22/92, de 4 de Setembro – Lei das Revistas, Buscas e das Apreensões, consignava que “sempre que possível, e salvo o disposto em leis especiais, os objectos apreendidos são juntos ao processo, sendo fiel depositário o funcionário que receber o processo, de tudo se fazendo referência no respectivo auto.”
Ademais, in casu, ao invés do agente da DPIC responsável pelo acompanhamento da queixa-crime, a função de fiel depositário foi atribuída ao Recorrente (fl. 120), a quem, nessa qualidade, estava vedado o exercício de quaisquer poderes de livre disposição, até mesmo se tida em conta a finalidade das apreensões, enquanto mecanismo para a obtenção das designadas provas reais, que têm por objecto as “coisas com interesse para a instrução do processo que, como tal, devem encontrar-se à disposição do tribunal, porque a sua utilização comum pode fazer-lhes perder essa qualidade de provas (…)” (Vasco Grandão Ramos, Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, FDUAN, 5.ª ed. p. 264).
Constata-se dos autos que o aqui Recorrente apossou-se dos bens em questão, tendo inclusive exercido actos de disposição, ao arrepio do previsto no n.º 2 do acima mencionado artigo 24.º, ao abrigo do qual a apreensão deve ser mantida até à data do julgamento e, identicamente, ao inscrito na alínea a) do artigo 1187.º e na primeira parte do artigo 1189.º, ambos do Código Civil, que impedem o depositário de exercer poderes de disposição, reservando-lhe um estrito poder de guarda com a obrigação de restituir a coisa depositada.
Daí que, ambas instâncias tenham considerado confessados os factos a favor do então Autor na Acção de Condenação, ex vi do n.º 1 do artigo 490.º do CPC, que versa sobre o ónus de impugnação especificado. Daqui se infere que o direito a julgamento justo e conforme e o princípio da legalidade não são violados se a obrigação legal (impugnar), em respeito a um direito (de se defender), não for convincente ou suficientemente sustentada. Não se trata apenas de argumentar, traduzida na arte de estilizar o discurso técnico, com o objectivo de demonstrar (defender) a sua perspectiva, mas é preciso mostrar adequadamente a prova do que se afirma. Daqui resulta informação fiável para o exercício da valoração e ponderação judicial, que não se basta ao que as partes apresentam, mas progride na experiência, nos valores e outros instrumentos que o juiz tem a sua disposição para exercer de modo necessariamente autónomo e competente o seu julgamento e proferir a decisão.
Valorar equitativamente a prova produzida não é simplesmente atribuir razão a quem pensa que tem, mas seguir de modo coerente e correcto o caminho que os resultados da apreciação livre da prova indicam, respeitando a proporcionalidade, a igualdade das partes, analisando de modo imparcial e objectivo a prova oferecida e julgando de modo adequando os resultados deste exercício, segundo os princípios do direito, as regras legais, a experiência e consciência do julgador. Daqui resulta melhor compreendido o ónus de impugnação especificada, que impõe ao réu a obrigação legal de se opor de certa forma, para abrir caminho ao juiz de fazer o seu exercício de modo adequado. Entretanto, vem o Autor basear-se em uma das excepções do referido artigo, designadamente, a manifesta oposição com a defesa considerada no seu conjunto.
Atente-se então para esta parte da referida norma;
A excepção de “manifesta oposição com a defesa” traduz-se em o réu defender-se, apresentando factos que, tal como descritos, contrariam toda a arguição da acusação. É importante destacar que o que se pretende aqui é a apresentação de facto ou factos que contrariem, toda a acusação, tornando dispensável, porque notoriamente desnecessária, a impugnação facto por facto. O aqui Recorrente levantou uma questão sobre a legitimidade para afastar a aplicação da responsabilidade civil sobre si.
A verdade é que esta arguição não contrariou toda acusação, pois resulta dos autos e de documentos, a ligação entre o Recorrente e os factos alegados pelo Autor, designadamente o conhecimento do erro sobre os bens e seu titular, a disposição indevida de tais bens e o prejuízo que Autor sofreu ao se encontrar privado dos seus bens.
Atender aquela modalidade de defesa, nos termos em que foi formulada não seria uma solução justa, pois resulta notório que o aqui Recorrente conhecia, desde a instrução, que os bens apreendidos no processo-crime pertenciam a pessoa diferente contra quem apresentou a queixa. Ademais, o processo não tinha como questão principal e exclusiva a legitimidade, pois existem outros factos e provas arrolados pelo Autor, para fundamentar a sua acusação. Assim, não era suficiente alegar uma excepção peremptória, considerando que a suficiência mede-se pela capacidade de certo facto alegado gerar no julgador o convencimento de oposição a todas as questões prejudiciais necessárias à decisão da causa.
Torna-se compreensível que o ónus da impugnação especificada contém exigências e, portanto, impõe e importa uma intervenção criteriosa e rigorosa para a conformação da defesa e para que a mesma seja adequada e convincente. Neste caso, não bastava levantar a questão da legitimidade, de modo incidental, mas demonstrar o não conhecimento do facto de que os materiais apreendidos eram de pessoa diferente da processada; a falta de acção prejudicial ou de acção sem intenção de prejudicar ou obter benefícios a custa de bem alheio; a não verificação de qualquer tipo de conduta reprovável e, no essencial, a demonstração de que não foi em consequência de uma acção do aqui Recorrente que os danos se verificaram.
Percebe-se, então, que não se tratava apenas de levantar uma excepção, que poderia suscitar outros meios processuais adequados para chamar a parte legitima à demanda, nem tão pouco de simplesmente contrariar. Portanto, neste caso, não se pode admitir o sentido que reclama o Recorrente e, por conseguinte, é de afastar a excepção, já que de outro modo, estaria o legislador a premiar a inexactidão, a obscuridade, a invenção de factos em prejuízo da verdade. Sendo que, uma tal solução faria prevalecer comportamentos pouco edificantes sobre o exercício sério da verdade, tornando inócua a justiça. Para este caso, faz melhor sentido o regime regra expresso na solução legal que é a de que deve o réu posicionar-se sobre “cada um dos factos articulados” na petição, sob pena de se considerarem admitidos por acordo (entenda-se confissão tácita) - n.º 1 do 490.º do CPC.
Portanto, da interpretação deste normativo resulta que, no exercício do direito ao contraditório, a parte contrária deve (e tem a oportunidade de) manifestar-se em relação à veracidade e exactidão dos factos articulados, se tal não acontecer, isto é, se nada for dito e subsistir uma atitude de indiferença ou de passividade, a cominação legal é a de os factos não impugnados especificadamente serem reconhecidos como verdadeiros, pressupondo-se que assim o seja por confissão tácita e, consequentemente, como plenamente provados, por concordância ou acordo ( tácito). Alberto Reis refere que se o facto está admitido por acordo sobre o mesmo “não pode incidir nem carece de incidir prova alguma; o acordo importa a prova plena do facto (…) e o juiz toma-o em consideração na sentença (…) exactamente porque se reputa provado plenamente” (Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Vol. IIII, 3.ª ed., p. 52).
Não se pode desconsiderar que há também um certo imperativo legal para o julgador pois, é a própria lei que determina os efeitos da valoração sobre os factos não impugnados especificadamente. São, por isso, assumidos como verdadeiros, ainda que se esteja perante uma presunção ilidível ou verdade meramente formal, que pode não corresponder, se tal não for demonstrado, à verdade material.
Os factos em causa presumem-se, portanto, dotados de força probatória plena, equiparados, assim, a designada prova legal. Como tal, todas as dúvidas que relevem para o processo de formação da convicção do Juiz relativamente à veracidade dos factos devem, necessariamente, ser contrariadas por meio de prova que ateste sobre a sua autenticidade, como decorre do estabelecido no artigo 347.º do CC e também do próprio n.º 1 do artigo 490.º do CPC.
Acresce-se, ainda, que no caso sub judice, conforme se extrai da Decisão colocada em crise, o Recorrente não agiu no sentido que dimanam os artigos acima referenciados. Não apresentou qualquer tipo de prova documental, nem de outra natureza por lei permitida. Limitou-se a apresentar a contestação, sem impugnar especificadamente os factos articulados pelo Autor da Acção Declarativa de Condenação, optando por centrar a sua defesa na actuação da DPIC, atribuindo a este órgão toda a responsabilidade pela apreensão de bens, pertencentes a pessoa distinta da visada na queixa-crime.
A par disso, é de realçar que nem o Recorrente, nem o seu mandatário compareceram, em sede da primeira Instância, à audiência preparatória convocada nos termos dos artigos 508.º e 509.º do CPC (ver fls. 102 e 106), no decurso da qual teriam tido a possibilidade de, entre outras questões, depurar dúvidas relativamente à matéria de facto e requerer a promoção de diligências probatórias, se necessário fosse.
Embora não se descure uma reflexão sobre oportunidade e conveniência que, no âmbito do direito a defesa o réu tem o direito de incluir na reflexão de suas estratégias de contestação, a prova, como sabido, visa demonstrar a realidade dos factos (artigo 341.º do C.C) ou, como refere Manuel A. Domingues de Andrade, “fornecer ao juiz os dados ou elementos necessários para controlar a veracidade das correspondentes afirmações das partes” (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1993, p. 190), sendo o seu objecto integrado pelos factos que mais relevam para a decisão da causa.
Constitui-se, por conseguinte, como elemento que condiciona o reconhecimento de direitos emergentes de determinado facto e a outorga da tutela jurídica nos termos em que é demandada ao tribunal.
Nesta medida, a justa composição dos litígios submetidos ao tribunal não pode estar dissociada da demonstração pelas partes processuais da verdade dos factos para permitir que o Julgador, sustentado no que fica provado, possa firmar o seu juízo decisório relativamente à pretensão ou pretensões das mesmas.
A produção da prova materializa, na perspectiva dos sujeitos processuais, o seu direito à prova que, igualmente, se constitui como uma das dimensões concretizadoras do direito de acesso ao tribunal e tutela jurisdicional efectiva. Ao mesmo tempo, a produção da prova, bem como a sua valoração adequada, ainda que com um sentido prefixado na lei, como no caso da prova legal, configuram-se como pressupostos em que se alicerça o direito a julgamento justo e conforme.
Enquanto direito com um amplo objecto de protecção, o direito a julgamento justo e conforme incorpora, além de outros, o direito ao contraditório e o consequente direito à defesa, pelo que no exercício do direito à prova, importa que as partes usufruam da prerrogativa de não apenas produzir prova, como também de impugnar a prova produzida pela parte contrária e de emitir a sua apreciação sobre a matéria probatória.
À luz deste direito, consagrado no artigo 72.º da CRA, os sujeitos processuais devem, pois, poder exercer plenamente e sem quaisquer limitações todos os direitos que configuram dimensões do direito a julgamento justo e conforme, em paralelo com o cumprimento das obrigações que lhes são impostas por lei, elementos que concorrem para a realização da justiça e obtenção de uma decisão justa.
Aliás, esta Corte Constitucional, suportada na doutrina e na jurisprudência, tem compreendido o direito a julgamento justo e conforme, na sua relação entre o indivíduo e o tribunal, como um pressuposto do Estado Democrático de Direito e uma garantia que supõe a existência de uma administração de justiça funcional, imparcial e independente, sendo o julgamento justo considerado como aquele que se baseia na equidade e igualdade de armas, em que as garantias processuais das partes são asseguradas durante todo o processo e a demanda tramita e é decidida dentro dos parâmetros constitucionais e legais. Nesta sua amplitude e quando observados o feixe de direitos e garantias em que se concretiza, legitima a própria função jurisdicional, constituindo-se como pressuposto de segurança jurídica e corolário de tutela jurisdicional efectiva (ver, entre outros, Acórdãos n.ºs 640/2020, 727/2022, 738/2022, 741/2022, 840/2023 e 946/2024, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao).
Desta feita, não subsistem fundamentos para que, com relação a este segmento da decisão impugnada, se determine pela violação do direito a julgamento justo e conforme e, inerentemente, pela ofensa ao princípio da legalidade, ao qual estão vinculados todos os entes públicos, que se obrigam a conformar os seus actos e decisões com o estipulado na Constituição e na lei, sob pena de nulidade dos mesmos e de colocar em causa a segurança jurídica e o próprio Estado de Direito.
Outrossim, os tribunais, por força do princípio da legalidade, reflectido no n.º 2 do artigo 6.º, no artigo 175.º e no n.º1 do artigo 177.º, todos da CRA, estão obrigados a espelhar o fundamento legal e também constitucional das suas decisões judiciais, em resultado do processo de interpretação e aplicação do direito aos factos dados como provados, por forma a que a solução da contenda não comprometa a racionalidade lógica em que deve alicerçar, a compreensão, a transparência (ao indicar em que ela se baseou) e a eficácia, elementos que promovem uma verdadeira pacificação do conflito. O princípio da legalidade funciona, deste modo, como um limite ao poder jurisdicional e como garantia contra o arbítrio.
Ora, a Decisão em crise materializa o primado da jurisdição, tendo em vista a subsunção dos factos à norma jurídica e ao direito e um exercício hermenêutico não contrário à Constituição, atendendo aos parâmetros em que se circunscreve a sua fundamentação. Nesta perspectiva, não se concretiza qualquer ofensa ao princípio da legalidade, como já referido.
Sobre a responsabilidade civil do Estado
A segunda questão sobre que incide o peticionado no âmbito do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem que ver com a arguição da violação do n.º 1 artigo 75.º da CRA, que consagra a responsabilidade civil do Estado e de outras pessoas colectivas públicas “por acções e omissões praticadas pelos seus órgãos, respectivos titulares, agentes e funcionários, no exercício das funções legislativa, jurisdicional e administrativa, ou por causa delas, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para o titular destes ou para terceiros.” Entende o Recorrente, conforme supra mencionado, que a indemnização a que foi condenado, nos termos do artigo 483.º do CC, viola, além do artigo 75.º da CRA, o princípio da legalidade e o direito de queixa consagrado no artigo 73.º, ambos da Lex Mater.
Esta Corte Constitucional tem configurado a responsabilidade civil do Estado como expressão relevante do Estado Democrático de Direito e mecanismo de amparo e efectivação de direitos fundamentais, ao não deixar os poderes públicos imunes ao dever de reparar danos patrimoniais ou de outra natureza, causados a particulares, matéria densificada na Lei n.º 30/22, de 29 de Agosto, que institui o regime jurídico da responsabilidade do Estado e de outras pessoas colectivas públicas, concretizando, desta feita, o artigo 75.º da CRA. No entanto, os fundamentos atendidos na Decisão ad quem demonstram claramente o conhecimento do erro subjectivo da pessoa visada, pelo aqui Recorrente, pois soube que o material apreendido pertencia a pessoa destinta da visada na sua queixa-crime (considerando que assistiu a apreensão). Esta atitude é censurável não apenas porque há uma proibição legal para dispor dos bens alheios, como também, obteve conhecimento do erro sobre o titular dos bens apreendidos e estava em melhor posição (é empresário no mesmo ramo), portanto mais consciente, de compreender os prejuízos financeiros que tal privação acarretaria ao dono. Para piorar, nada disse e não promoveu quaisquer diligências para a devolução dos referidos bens, dispondo dos mesmos como se fossem seus. Pelo que, tem razão o Tribunal ad quem ao reafirmar o preceituado no 483.º do CC, ou seja, a obrigação de indemnizar por comportamento doloso, consciente, voluntário e lesivo ao direito de propriedade de outrem, de que resultaram elevados prejuízos.
Neste sentido, o direito e seus mecanismos devem ser utilizados para evitar o prejudicial. Para o efeito, as partes devem comportar-se em coerência com os valores que reivindicam, até porque a quem muito é dado, muito lhe é exigido, para que se cumpra proporcional e equitativamente a justiça.
Para esta Corte, foi adequada a solução da Decisão ad quem, pois se pretende promover a atitude correcta e o legalmente exigível. Relembrando que a responsabilidade implica que a liberdade seja usada e exercida na relação com outros, estando a ela associadas, por essência, as ideias de limite e boa-fé.
Sobre o direito de petição, denúncia, reclamação e queixa
Determina o artigo 73.º que “todos têm o direito de apresentar, individual ou colectivamente, aos órgãos de soberania ou a quaisquer autoridades, petições, denúncias, reclamações ou queixas, para a defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral, bem como o direito de ser informados em prazo razoável sobre o resultado”, matéria que se encontra densificada na Lei n.º 9/22, de 20 de Abril – Lei sobre o Direito de Petição.
Neste diploma legal, que regula o conjunto de direitos previstos no artigo 73.º, reconhecendo-os como “imprescindíveis para a realização efectiva dos direitos, liberdades e garantias e demais direitos ou interesses legalmente protegidos”, a queixa é descrita como “a denúncia de qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade, bem como do funcionamento anómalo de qualquer serviço, com vista à adopção de medidas de correcção da anomalia detectada”(alínea e) do artigo 2.º), a submeter aos órgãos de soberania ou a quaisquer outras autoridades, com excepção dos Tribunais (n.º 1 do artigo 1.º).
Nesta concepção de direito fundamental, configura-se num verdadeiro direito de acção, embora de cariz não jurisdicional, que faz recair sobre a entidade destinatária a obrigação de receber, examinar e comunicar a decisão que sobre a queixa for tomada (n.º 1 do artigo 8.º). Jorge Miranda refere que o direito de petição (petição sctritu sensu e queixa) funciona como uma garantia petitória, contraposta às garantias impugnatórias, cingindo-se a solicitar a atenção do órgão competente para situações ou actos ilegais ou injustos (…), sendo estruturalmente um direito com uma componente de liberdade e uma de direito positivo (Notas sobre o Direito de Petição, in Revista do Curso de Mestrado em Direito da UFC, p. 285, https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/12151/1/2008_art_jmiranda.pdf).
A queixa-crime, por seu lado, apesar de ser um instituto de natureza processual penal, que tem em vista fazer intervir, se for o caso, o ius puniendi do Estado, não deixa, contudo, de representar, numa visão mais abrangente, uma manifestação do direito constitucional de queixa, plasmado no artigo 73.º e regulado pela Lei n.º 9/22, prerrogativa atribuída, sem excepção, a todos os cidadãos. Ambos os institutos, a queixa-crime e a queixa constitucional, visam, afinal, a denúncia de actos ilícitos que atentem contra a Constituição e a lei, bem como a defesa de direitos juridicamente protegidos, apesar de divergirem quanto à sua natureza e os efeitos que delas resultam.
É, pois, neste sentido que se deve interpretar o recurso à DPIC para apresentação da queixa-crime, enquanto efectivação do exercício do direito do Recorrente de denunciar um facto que reputava ilegal e atentatório a direitos que detinha no âmbito de uma sociedade comercial, acto que, em si, configura a protecção constitucional decorrente do artigo 73.º da CRA.
Porém, e como se pode verificar, o direito de queixa não confere qualquer protecção a condutas ilícitas praticadas pelo queixoso na sequência da submissão da queixa e, também, nem sequer o exonera de ser responsabilizado civil ou criminalmente por tais actos. É, na verdade, o que decorre do disposto no n.º 2 artigo 7.º da Lei n.º 9/22 que, ao garantir, no seu n.º 1, o exercício sem constrangimentos, nem privilégios do direito de petição, latu sensu considerado, não isenta o peticionário/queixoso de responsabilidade criminal, disciplinar ou civil, quando desse exercício resultar ofensa ilegítima de interesse legalmente protegido.
No caso vertente, a condenação do Recorrente resultou, conforme demonstrado, da utilização indevida de bens apreendidos, tendo em conta as obrigações que sobre si recaiam enquanto fiel depositário, comportamento este que nada tem que ver com o exercício do direito de queixa nos termos em que aqui é configurado.
Falece, por consequência, a alegação sobre a violação deste direito que, ante o que os autos revelam, foi livremente exercido e sem quaisquer impedimentos ou constrangimentos.
Desta sorte, considerando tudo o que foi exposto, entende esta Corte que não se verifica a alegada inconstitucionalidade do Acórdão objecto de impugnação. A Decisão sindicada foi proferida dentro dos parâmetros determinados pelo princípio da legalidade e do direito a julgamento justo e conforme, não resultando da aplicação da lei ao caso concreto e da observância dos direitos, garantias e obrigações, em que se concretiza o julgamento justo, a violação implícita do direito de petição e queixa, como também do princípio da responsabilidade civil do Estado, consagrados, respectivamente, nos artigos 73.º e 75.º da Constituição da República de Angola.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.
Custas pelo Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 4 de Novembro de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Jacinto Prazeres (Presidente)
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Amélia Augusto Varela
Carlos Alberto B. Burity da Silva
Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo (Relatora)
Gilberto de Faria Magalhães
João Carlos António Paulino
Lucas Manuel João Quilundo
Vitorino Domingos Hossi