ACÓRDÃO N.º 1055/2025
PROCESSO N.º 1329-A/2025
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Márcio Amândio Lisboa Gomes, melhor identificado nos autos, veio a este Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 41.º e da alínea a) do artigo 49.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade da Decisão da 1.ª Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferida no Processo n.º 3416/2021, que confirmou a Decisão do então Tribunal Provincial da Huíla.
Inconformado com aquela Decisão, e por ser sua convicção que a mesma é inconstitucional, interpôs o presente recurso alegando em síntese que:
1. Foi julgado e condenado pelo Tribunal Provincial da Huíla a 13 anos de prisão, pela prática do crime de burla por defraudação, tendo, em sede de recurso, o Tribunal Supremo confirmado a Decisão recorrida.
2. Existem irregularidades e violações das normas legais previstas na CRA em sede da tramitação da 1.ª instância.
3. Na fase de instrução preparatória, durante o interrogatório, foi violentamente torturado pelo instrutor do processo para o obrigar a produzir provas contra si e confessar a recepção de Kz. 10 000.000,00 (dez milhões de kwanzas) de uma das vítimas.
4. O instrutor em causa foi julgado e condenado por se ter comprovado que o mesmo torturou o Recorrente.
5. O princípio da não auto incriminação consagra que ninguém pode ser coagido a confessar um crime ou a fornecer informação que possa incriminá-lo.
6. In casu, o referido princípio foi violado e com a agravante do Tribunal a quo, na sua Decisão condenatória, se ter baseado nas referidas declarações assinadas pelo Recorrente, obtidas por coacção física.
7. Na fase de julgamento, a defesa do Recorrente invocou novamente tais factos, nomeadamente, a falsidade do documento apresentado pela ofendida, bem como a coacção física para o Recorrente confessar que recebeu Kz. 10 000 000,00 (dez milhões de Kwanzas).
8. Tanto o Tribunal de 1.ª instância, como o Tribunal Supremo negligenciaram tais factos e desse modo violaram os princípios da verdade material, consubstanciado no princípio da legalidade, previsto no n.º 2 do artigo 6.º e o direito a julgamento justo e conforme a lei, estabelecido no artigo 72.º, ambos da CRA.
9. Da leitura da Decisão da 1.ª instância e do conteúdo que se extrai do Acórdão da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, depreende-se que apenas se basearam nas declarações adulteradas da ofendida e suas filhas, violando o princípio da igualdade de tratamento das partes consagrado no artigo 23.º da CRA.
10. O Tribunal de 1.ª instância falhou na aplicação correcta da lei, na valoração das provas e na garantia de um processo equitativo, violando assim, os direitos fundamentais do Recorrente, nomeadamente, o direito a ampla defesa e do contraditório, previsto no n.º 1 do artigo 67.º e o direito a julgamento justo e conforme a lei previsto no artigo 72.º ambos da CRA.
Termina as suas alegações requerendo que seja declarada a inconstitucionalidade da Decisão recorrida por violação dos princípios alegados.
O Processo foi à vista do Ministério Público que pugnou pelo não provimento do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do parágrafo único do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
III. LEGITIMIDADE
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, dispõem de legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “(…) as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
O Recorrente foi parte do Processo n.º 3416/2021, que tramitou na 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, não se conformando com a Decisão prolatada, tem, pois, legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
IV. OBJECTO
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem por objecto a Decisão proferida pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, em sede do Processo n.º 3416/2021, que confirmou a condenação do Recorrente, e verificar se a mesma ofendeu princípios, violou direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados.
V. APRECIANDO
O Recorrente foi julgado pelo então Tribunal Provincial da Huíla pela prática dos crimes de burla, burla por defraudação, abuso de confiança e falsificação de documentos, crimes estes previstos e puníveis pelo n.º 1 do artigo 451.º e n.º 5 do artigo 421.º, ambos do Código Penal em vigor à data dos factos, tendo sido condenado na pena de 13 anos de prisão maior e na obrigação de indemnizar as vítimas pelos danos causados.
Por imperativo legal, o Ministério Público interpôs recurso junto do Tribunal Supremo, sendo que em sede de reapreciação dos factos naquela instância e por aplicação da lei penal nova (mais favorável), bem como ponderando as circunstâncias atenuantes e agravantes aplicáveis ao caso, foi a pena reduzida para 10 anos de prisão, mantendo, todavia, a obrigação do Recorrente indemnizar as vítimas.
Por entender que a Decisão recorrida contém erros na valoração da prova viola direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição da República de Angola (CRA), designadamente, o direito ao contraditório e à ampla defesa, o direito a não auto incriminação e a julgamento justo e conforme, interpôs o presente recurso.
Vejamos, pois, se lhe assiste razão.
Sustenta o Recorrente que o Acórdão, ora em sindicância, enferma de erros na valoração da prova, na medida em que, em seu entender, não terem sido apreciados de forma integral e imparcial os elementos probatórios constantes dos autos, e resultando, dessa forma, numa Decisão atentatória da verdade material e comprometedora das garantias fundamentais de defesa.
O Tribunal Constitucional, enquanto garante da correcta interpretação e aplicação da Constituição e âmbito do controle da constitucionalidade, caracteriza a sua actuação de forma restrita no que diz respeito à apreciação do mérito das provas produzidas em sede de um determinado processo. Este entendimento decorre da competência entre os Tribunais das distintas jurisdições e no caso da necessidade de preservação da soberania das instâncias ordinárias, no que a valoração dos elementos probatórios trazidos destes importa, porquanto, esta apreciação compete, em regra, aos órgãos julgadores de 1.ª e 2.ª instâncias.
De acordo com a jurisprudência consolidada nesta sede; esta Corte não se ocupa, em regra, do reexame, da plausibilidade ou da correcta valoração das provas, salvo em casos de manifesta violação de direitos fundamentais, primando, deste modo em garantir a segurança jurídica, a estabilidade das decisões judiciais e a soberania do juízo de mérito, evitando, assim, que o controlo constitucional se transforme numa verdadeira reavaliação de factos e provas, ultrapassando, desse modo, aquela que é a sua função jurisdicional.
Ademais, a valoração probatória configura uma actividade com alguma complexidade, subjectiva e discricionária do juiz, cuja análise é privativa das instâncias ordinárias. A substituição de tal análise por um exame meritório do Tribunal Constitucional representaria uma verdadeira usurpação de competências, afectando a autonomia dos órgãos julgadores e resultando numa revisão indevida das decisões proferidas pelos outros tribunais.
Desde logo, este Tribunal limitar-se-á em verificar, na Decisão em crise, eventuais situações constitutivas da violação de normas constitucionais, especialmente no que diz respeito, aos direitos fundamentais, sem se manifestar sobre a correcção ou incorrecção da valoração probatória, uma vez que tal atribuição compete, como já se referiu às instâncias ordinárias de julgamento.
Ora;
O direito a julgamento justo e conforme consagrado no artigo 72.º da CRA, enquanto corolário do Estado Democrático de Direito e da dignidade da pessoa humana, se traduz na exigência de que todo o processo penal deve observar as garantias previstas na CRA. A imparcialidade e equidade que se espera dos Tribunais, devem, pois, assegurar em concreto que, ninguém seja julgado sem a observância do devido processo legal.
A garantia do processo devido, compreende não apenas a correcta aplicação da lei, como também o respeito pelos princípios estruturantes da verdade material, do contraditório e da ampla defesa, elementos primários que garantem o equilíbrio entre a pretensão punitiva do Estado e a protecção dos direitos dos arguidos. É por isso considerada, uma garantia processual fundamental, oponível erga omnes, que assegura aos cidadãos a tutela jurisdicional efectiva mediante um processo equitativo nos termos do regime constitucional das liberdades, direitos e garantias fundamentais, vinculando todos os poderes públicos.
O princípio da verdade material, embora de matriz infraconstitucional, decorre do artigo 72.º da CRA, na medida em que integra o conteúdo do julgamento justo e conforme e impõe ao Juiz o dever de apurar a verdade dos factos com base em todos os elementos disponíveis, atendendo o senso comum de homem mediano, evitando a sua actuação numa verdade meramente formal resultante única e exclusivamente das proposições processuais das partes.
Contudo, a busca da verdade material estará limitada pelas garantias constitucionais do arguido, nomeadamente, pelo direito à não auto incriminação e pela presunção de inocência, a violação de direitos fundamentais salvaguardados pela Constituição, sempre preservando um equilíbrio entre o interesse público na descoberta da verdade material e a salvaguarda da dignidade e dos direitos de defesa do arguido.
Por seu turno o direito à ampla defesa e ao contraditório é uma garantia com consagração constitucional prevista no n.º 1 do artigo 67.º da CRA, ao estabelecer que “ninguém pode ser detido, preso ou submetido a julgamento senão nos termos da lei, sendo garantido a todos os arguidos ou presos o direito de defesa”. Tais direitos estão alicerçados em dois pilares essenciais: o direito de o arguido participar activamente no processo, podendo influenciar a formação da convicção do Tribunal e no direito de contradizer, em tempo e de forma adequada, a todos os actos e provas que possam conduzir à sua condenação. Implicando uma efectiva paridade de armas entre a acusação e a defesa, condição indispensável à realização de um julgamento justo e conforme a lei.
Alega o Recorrente que os princípios supra foram violados na medida em que foi obrigado a produzir prova contra si mesmo. O direito a não ser obrigado a confessar-se culpado encontra protecção na alínea g) do artigo 63.º da CRA, e constitui por si só uma das manifestações mais relevantes do direito de defesa e da dignidade da pessoa humana.
Este princípio, que também encontra consagração em instrumentos internacionais de direitos humanos — designadamente a alínea g) do artigo 14.º, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos — impede que o arguido seja coagido, directa ou indirectamente, a contribuir para a sua própria incriminação.
E como observa Benja Satula, “este direito fundamental garante que o indivíduo não será reduzido a mero objecto da actividade estadual e visa realizar uma protecção completa da liberdade individual de cada cidadão. Ora, esta liberdade é posta em perigo quando o arguido é convertido em meio de prova contra si mesmo. Só quando se reconhece ao indivíduo um direito completo ao silêncio no processo penal, se lhe assegura aquela área intocável de liberdade humana, em absoluto subtraída à intervenção do poder estatal” (Nemo tenetur se ipsum. Direito ou princípio? Revista Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Angola, Vol. 1 n.º 2, Penal e Processo penal, Lisboa, UCE, 2016, p. 17)
Pelo que, em consequência, qualquer meio de prova obtido com violação desse princípio carece de validade constitucional, contaminando a Decisão que dele se sirva.
Dos autos, não se infere e nem o Recorrente demonstra, que tenha sido obrigado a produzir prova contra si mesmo. Pelo contrário, a Decisão ora recorrida não se alicerçou, exclusivamente, na confissão voluntária do arguido, mas também em outros meios de prova devidamente produzidos e apreciados em sede de audiência de julgamento tais como, os testemunhos das vítimas, as provas documentais (extractos de conversas telefónicas juntos a fls. 291 a 331, nas quais o Recorrente reconhece ter recebido a quantia de 10 000 000,00 “dez milhões de kwanzas”, valor cuja origem e destino foram examinados no contexto do processo).
Do exposto, resultou a apreciação e a convicção do Tribunal a quo, confirmada pelo Tribunal ad quem, como consequência de uma avaliação global e articulada dos elementos probatórios resultantes da prova produzida e, não apenas duma confissão isolada ou obtida sob constrangimento, como alega o Recorrente, sem o sustentar, pelo que, entende este Tribunal dar como não verificada a alegada violação do direito à não auto incriminação.
Importa ainda salientar que no ordenamento jurídico angolano, o Juiz penal é o destinatário último da prova, sendo-lhe conferida uma ampla liberdade de apreciação nos termos do princípio da livre convicção motivada, consagrado no artigo 12.º do Código de Processo Penal Angolano (CPPA). Tal princípio impõe que a decisão não seja baseada em critérios arbitrários, mas sim numa convicção racional, lógica e fundamentada nos elementos objectivos constantes dos autos e condicionada pelos limites do devido processo legal, da imparcialidade e da motivação das decisões judiciais previsto no artigo 174.º da CRA.
No caso em apreço, entende esta Corte, que o Tribunal ad quem fundou a sua convicção não apenas na confissão do Recorrente, mas também em provas documentais, testemunhais e materiais, devidamente apreciadas, das quais resultou a confirmação dos factos que lhe são imputados.
Logo, não se sustenta verídico que a convicção do Juiz tenha sido formada à revelia das garantias constitucionais. E mais importa salientar, que, o Tribunal Supremo, ao aplicar a lei penal nova e proceder à redução da pena de 13 para 10 anos de prisão, demonstrou ter ponderado as circunstâncias atenuantes e agravantes, bem como os critérios de proporcionalidade e adequação da sanção, em consonância com os princípios constitucionais da justiça e da humanidade das penas.
Em suma, não obstante a invocada alegação do Recorrente, segundo a qual da Decisão revidenda resulta a violação de princípios constitucionais e processuais, a sua convicção, enferma de fundamentação concreta quanto aos alegados vícios procedimentais por parte do Tribunal a quo e do Tribunal ad quem. Pois, não logrou demonstrar, de forma objectiva e pormenorizada os factos alegados ou ao menos em que momento processual teriam sido efectivamente colocados em causa os seus direitos fundamentais, limitando-se a enunciações genéricas e desprovidas de substrato factual demonstrável.
Da leitura dos autos, torna-se evidente que o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade não está alicerçado em vícios de natureza formal ou material que coloquem em causa a Decisão, mas antes reflecte uma verdadeira discordância subjectiva por parte do Recorrente quanto ao juízo de mérito formulado pelas instâncias decisórias, circunstância que, per se, não configura vício de inconstitucionalidade ou ilegalidade susceptível de anulação da decisão.
Constata-se, claramente, tratar-se de uma vã tentativa do Recorrente procurar obter a reapreciação dos factos, como se o Tribunal Constitucional de mais uma instância da jurisdição comum se tratasse, intenção que não passa imune à lente atenta desta Corte.
Pelo que, em ultima ratio, não se verifica no Acórdão recorrido, qualquer violação quer do direito a julgamento justo e conforme, do direito a não auto incriminação e do direito ao contraditório e à ampla defesa, previstos no artigo 72.º, na alínea g) do artigo 63.º e no n.º 2 do artigo 174.º, todos da CRA.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, EM VIRTUDE DE O ACÓRDÃO RECORRIDO NÃO TER OFENDIDO A CONSTITUIÇÃO E A LEI.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 4 de Dezembro de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Jacinto Prazeres (Presidente)
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Amélia Augusto Varela
Carlos Alberto B. Burity da Silva
Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Gilberto de Faria Magalhães (Relator)
João Carlos António Paulino
Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Vitorino Domingos Hossi