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CONFERÊNCIA DAS JURISDIÇÕES CONSTITUCIONAIS DA CPLP

Na sua intervenção, durante a sessão de trabalho da VI Conferência das Jurisdições Constitucionais dos Países de Língua Portuguesa, que Moçambique acolhe, de 15 a 16 de Julho de 2024, a Juíza Presidente do Tribunal Constitucional, 𝗟𝗮𝘂𝗿𝗶𝗻𝗱𝗮 𝗣𝗿𝗮𝘇𝗲𝗿𝗲𝘀 𝗖𝗮𝗿d𝗼𝘀𝗼, refletiu com os presentes “sobre o lugar que ocupam as jurisdições constitucionais no estado constitucional, bem como da relação que estas têm ou deviam ter com os outros poderes do Estado”.

Na íntegra, a intervenção da Juíza Conselheira Presidente do Tribunal Constitucional.

Minhas senhoras e meus senhores,

É com grande honra e entusiasmo que participo nesta VI Assembleia da Conferência das Jurisdições Constitucionais dos Países de Língua Portuguesa, sobre o lema “A jurisdição constitucional e outros poderes”, no qual somos todos convidados a reflectir sobre o lugar que ocupam as jurisdições constitucionais no estado constitucional, bem como da relação que estas têm ou deviam ter com os outros poderes do Estado.

O tema geral a abordar é extremamente pertinente, tanto como mais complexo do que aparenta. Uma vez que o mesmo constitui um desafio constante para qualquer país que se pretenda afirmar como Estado democrático e de Direito, dizendo respeito não somente a existência de uma real separação entre os poderes soberanos – com a necessária relação de interdependência entre os diferentes poderes do estado – mas também respeitando a garantia prática e efectiva de uma convivência harmoniosa entre o poder judicial e os demais poderes, e ainda a uma igualmente harmoniosa e funcional convivência entre a jurisdição constitucional e outras instâncias jurisdicionais superiores, sejam elas comuns ou também especiais, no quadro da arquitetura do sistema.  

Vale-me recordar à propósito as lições de JJ. GOMES CANOTILHO, que assevera “separação” do poder judicial ou, nos termos constitucionais, do órgão soberania “Tribunais”, desempenha duas funções: (i) garantir a liberdade, pois não há liberdade quando existe concentração ou confusão entre quem faz as leis, quem as aplica e quem julga; (ii) garantir a independência da magistratura, “pois só os magistrados independentes podem assegurar a justiça em liberdade”.

Por conseguinte, a independência dos Tribunais e dos Juízes apenas podem ser tidas em consideração numa estrutura organizacional de um Estado onde se consagra o princípio da separação de poderes. Dito de outro modo, a independência dos Tribunais e dos juízes é uma consequência necessária do princípio da separação de poderes, dado que só poderemos falar em inter-relações, em limitações recíprocas, e em interferências em relação a outros poderes, se estiver previamente determinado o espaço de cada um.

No entanto, ao discutirmos a relação entre a jurisdição constitucional e os outros poderes partimos da premissa de que dentro do poder judiciário a relação é sempre pacífica. Porém, tal afirmação está longe da realidade em muitos ordenamentos jurídicos e o nosso não é excepção. 

 

 Dentre os vários temas propostos em sede do lema central, decidi falar sobre a “efetividade/execução das decisões do Tribunal Constitucional pelos demais poderes.

Um dos grandes problemas com que se debate a jurisdição constitucional em Angola é a execução das decisões proferidas em sede do Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade pelos Tribunais da Jurisdição Comum.

Caros Colegas,

Minhas Senhoras e Senhores,

Para melhor compreensão da questão e dos aparentes conflitos, permitam-me fazer aqui uma breve retrospectiva sobre a jurisdição constitucional em Angola.

Entre 1991 e 1992, na sequência da assinatura dos “Acordos de Bicesse” que visavam o fim da Guerra Civil em Angola, operou-se uma grande ruptura com o regime até então vigente. O País adoptou a democracia como princípio de organização política, de estruturação e funcionamento do Estado, tendo transitado do sistema de partido único para o multipartidarismo. Foi neste sentido aprovada uma nova Lei Constitucional, que já consagrava expressamente uma densa cartilha de direitos fundamentais, bem como, dentre outros princípios, o princípio da separação de poderes.

Foi com a Lei Constitucional de 1991/92 que o Tribunal Constitucional passou a ter consagração na Lex Mater. Porém, a sua real institucionalização foi protelada por uma década e meia, sendo que, as suas competências eram exercidas até então pelo Tribunal Supremo (órgão máximo da Jurisdição Comum), mantendo-se assim por um longo período um status meramente transitório previsto por aquela Lei Constitucional.

O Tribunal Supremo exercia competências constitucionais, dentre estas, apreciar em recurso, as decisões dos demais tribunais que aplicassem ou se recusassem aplicar normas cuja constitucionalidade tivesse sido suscitada.

O recurso supracitado não dispunha de um nome técnico-jurídico próprio, até ao ano de 2008, altura em que foi institucionalizado o Tribunal Constitucional com a aprovação e publicação das Leis n.º 02/08 e n.º 03/08, ambas de 17 de Junho -, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional e Lei Orgânica do Processo Constitucional, respectivamente.

Com a aprovação destes dois importantes diplomas, o Tribunal Constitucional, em matéria de recurso, passou a apreciar dois tipos: o Recurso Ordinário de Inconstitucionalidade (ROI) e o Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade (REI), que são mecanismos jurídicos de fiscalização concreta da constitucionalidade.

Sem descurar as várias metamorfoses que marcaram a história constitucional angolana, “o grande salto” evolutivo do nosso constitucionalismo verificou-se com a aprovação da Constituição da República de Angola, isto é, em 2010.

A Constituição da República de Angola de 2010 (CRA) reforçou os fundamentos do Estado Angolano, ancorados nos princípios do Estado democrático e de Direito, no respeito pela dignidade da pessoa humana e na vontade do povo, tendo como objetivo fundamental a construção duma sociedade livre, justa, democrática, solidaria, de paz, igualdade e progresso social.

Reforçou, também, as garantias e limitou as competências dos órgãos que compõe o Sistema jurisdicional angolano, com realce para o Tribunal Constitucional (cfr. Artigo 181º CRA) que, entretanto, havia sido institucionalizado dois anos antes, isto é, em 2008 através da Lei n.º 02/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

O Tribunal Constitucional, enquanto órgão competente na administração da justiça em matérias de natureza jurídico constitucionais, nos termos do artigo 6.º da sua Lei Orgânica, “as suas decisões são de cumprimento obrigatório para todas as entidades públicas ou privadas e prevalecem sobre as dos restantes tribunais e de quaisquer autoridades, incluindo o Tribunal Supremo”.

Todavia, o Tribunal Constitucional não é um supervisor omnipresente do respeito aos direitos fundamentais por parte dos demais órgãos do Estado e da sociedade, uma vez que, a sua natureza reactiva, não lhe permite agir por iniciativa própria, nem mesmo quando os juízes que o compõem olham com preocupação para algum fenómeno da vida constitucional, requerendo-se sempre um impulso externo, isto é, uma petição ou um recurso de inconstitucionalidade, não obstante a necessidade judicativa.

Sem prejuízo, podemos ainda concluir que o sistema constitucional angolano é caracterizado por uma jurisdição constitucional forte. Uma vez que o Tribunal Constitucional ao possuir esta força vinculativa obrigatória das suas decisões, afirma a soberania do exercício da sua autoridade nas funções de controlo constitucional e de protecção dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Com efeito, na eficácia e execução das decisões nos processos de fiscalização abstrata preventiva e sucessiva e por omissão, a CRA é peremptória, elevando a uma declaração de constitucionalidade com natureza executiva (artigo 231.º): a declaração de inconstitucionalidade tem força obrigatória geral e produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional e determina a repristinação da norma revogada.

 

A título de exemplo, no que concerne a relevância e a prevalência das decisões do Tribunal Constitucional em relação aos outros Poderes, nomeadamente, Poder Legislativo, Executivo e Judicial, pode ser aferida por meio de uma análise do nosso acervo jurisprudencial, o seguinte:

- Em relação a Assembleia Nacional (Poder Legislativo), podemos sublinhar, dentre vários acórdãos, o Acórdão n.º 111/2010, de 21 de Janeiro, em sede de fiscalização preventiva da Constituição, em que o Tribunal Constitucional, no controlo do Projecto de Lei da Constituição de 2010, proveniente e aprovada pelo Parlamento, considerou que o modo de eleição do Vice-Presidente da República, colidia com os limites materiais da revisão constitucional consagrados na Lei Constitucional de 1992. O Parlamento, por sua vez, em obediência ao quadro constitucional e legal vigente, alterou e conformou a forma de eleição do Vice-Presidente da República, nos termos da decisão do Tribunal Constitucional.

- Acórdão n.º 688/2021, de 9 de Agosto, igualmente num processo de fiscalização abstrativa preventiva do Projecto de Lei de Revisão Constitucional, em que o Tribunal Constitucional considerou inconstitucional a disposição que determinava a remissão anual do relatório da sua actividade ao Presidente da República e a Assembleia Nacional para conhecimento, pois, violava o princípio da separação de poderes. Sendo devolvido o Projecto à Assembleia Nacional, esta retirou tal disposição, conformando-o à decisão do Tribunal Constitucional.

-A estes acórdãos se podem juntar, dentre outros, o acórdão n.º 881/2024, de 2 de Abril, sobre a constitucionalidade do n.º 3 do artigo 284.º da Lei do Regimento da Assembleia; e ainda o acórdão n.º 608/2020, de 15 de Abril, sobre um contencioso parlamentar.

- Já em relação ao Poder Executivo, destaca-se o acórdão n.º 845/2023, de 03 de Outubro, decidido em sede de um processo de fiscalização abstrata sucessiva intentado pela Ordem dos Advogados de Angola, sobre a inconstitucionalidade do Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de Março. O Tribunal Constitucional, declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade orgânica e formal das normas constantes do Decreto Presidencial que estabelecia o Regime de comparticipação atribuído aos órgãos da administração da justiça, pelos activos financeiros e não financeiros por si recuperados (10%) nas suas decisões, por contrastarem com as garantias de independência e imparcialidade dos tribunais. Com a publicação da decisão do Tribunal Constitucional em Diário da República, o Decreto Presidencial perdeu a sua eficácia conformando-se assim a decisão daquela Corte.

- Em relação a Procuradoria-Geral da República, destaca-se o acórdão n.º 796/2023, de 24 de Janeiro, em sede do processo de fiscalização abstrata sucessiva impetrado pela Procuradoria-Geral da República, sobre a

inconstitucionalidade do artigo 6.º e do n.º 1 do artigo 31.º da Lei de Bases da Organização e Funcionamento da Polícia Nacional. O Tribunal Constitucional decidiu por não declarar inconstitucional os preceitos invocados.

Dito isto, minhas Senhoras e meus Senhores,

No quadro da fiscalização concreta, recorde-se, a nossa jurisdição constitucional conta com dois mecanismos de garantia dos direitos e liberdades dos indivíduos. O Recurso Ordinário de Inconstitucionalidade – ROI (de garantia da norma) e o Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade - REI (de garantia dos actos) dos órgãos do Estado (com traços característicos do recurso de amparo mexicano e da reclamação constitucional alemã).

Em relação as decisões dos Tribunais da Jurisdição Comum, a grande maioria das decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional resultam de processos de fiscalização concreta, ou seja, o Recurso extraordinário de inconstitucionalidade (REI), após esgotamento da cadeia recursória da jurisdição comum. Ironicamente é, exatamente, em relação aos órgãos judiciais, e em particular a jurisdição suprema comum que as decisões do Tribunal Constitucional encontram maiores constrangimentos (resistência) em termos de execução.

A título de exemplo, existem dezenas de decisões do Tribunal Constitucional que os demais tribunais (com realce para o Tribunal Supremo) têm dificuldades executar: Acórdãos n.º 778/2022, 780/2022, 782/2022, 785/2022, 792/2022, 794/2022, 829/2023, 832/2023, 832/2023, 842/2023, 851/2023 todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao.

Destarte, é importante reiterar que a protecção dos direitos fundamentais e a garantia do princípio da supremacia da Constituição no sistema jurídico angolano é uma função de todos os tribunais nos termos do artigo 177.º da CRA (no quadro da chamada fiscalização difusa da constitucionalidade).

No entanto, se a protecção judicial, no âmbito dos direitos fundamentais e dos valores da Constituição, é também uma função dos tribunais da jurisdição comum, existindo dúvidas, conflitos de interpretação e/ou aplicação incorrectas, nestes casos, a Jurisdição Constitucional sempre que demandada exerce a sua judicação, com a possibilidade de corrigir tais situações por via do recurso constitucional e as petições de controlo de constitucionalidade, devendo ter a primazia material decisória que a CRA lhe confere.

Para terminar, reitero que o Tribunal Constitucional, em vários dos seus acórdãos, deixa claro que não é nem uma instância de “super-revisão” jurídica nem factual, mas também não pode abster-se completamente do controlo de tais sentenças e ignorar o facto de que as regras podem ter sido ignoradas, uma vez que não lhe cabe determinar se as decisões estão correctas nos termos do direito comum (já que o Tribunal Constitucional não aprecia a matéria de facto). O Tribunal apenas controla se a sentença judicial viola um princípio ou direito constitucional específico.

 Exemplificando: o Tribunal Constitucional não apreciaria os fundamentos de razão das partes envolvidas, mas apenas apreciaria se o objecto de um arresto determinado por um tribunal da jurisdição comum foi interpretado ultrapassando os limites estabelecidos pela Constituição; em particular, quando tal interpretação é incompatível com o sentido e o alcance dos direitos, garantias e liberdades fundamentais consagrados na Constituição, tendo nessa matéria, cabendo-lhe a competência para decidir em última instância (artigo 6º LOTC) tal como referenciado supra. Devendo o tribunal da jurisdição comum (sendo irrelevante o seu grau hierárquico) considerar formal e materialmente a decisão do Tribunal Constitucional, expurgando a inconstitucionalidade determinada.

Em conclusão, é mister dizer-se que a vitalidade funcional de um Estado de Direito é observável à vista desarmada não quando os poderes se exercem expansivamente de forma concorrencial, mas quando eles (justa e constitucionalmente) se autolimitam, para se conformarem existencialmente numa admissão de interdependência recíproca.

MUITO OBRIGADA

www.tribunalconstitucional.ao